O caso de Mendubim e o cenário para novos projetos solares no mercado livre

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A conjuntura que viabilizou a construção do parque solar Mendubim, de 531 MW, mudou, mas ainda é possível replicar o modelo ou, ao menos, usar a experiência adquirida com o projeto para materializar os mais de 4 GW de novos projetos em desenvolvimento dos sócios do empreendimento, avaliam as emrpesas envolvidas. A venda de 60% da energia em um contrato de 20 anos e o financiamento de Mendubim foram inovadores por serem precificados em dólar, antecipando uma opção atualmente prevista em lei, desde 2023.

O aprendizado com a operação serviu também para os bancos envolvidos no financiamento de US$ 243 milhões, o Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), BNP Paribas e Santander, incluindo a definição de premissas mínimas de certificação da cadeia de fornecimento para garantir as metas ESG.

O restante do investimento, US$ 187 milhões, foi desembolsado pelos sócios da usina, Scatec, Hydro Rein e Equinor, que fecharam o contrato precificado em dólar, pioneiro nesse modelo, com a exportadora de alumina Alunorte, uma controlada da Hydro Rein, que aumentou o seu consumo de energia elétrica com a troca de três caldeiras a carvão por caldeiras elétricas.

A substituição, que deve ser concluída até o final do ano, resultou em uma queda de 30% nas emissões da Alunorte, que tem o objetivo de redução de 70% até 2030, segundo o vice-presidente de Operações de bauxita e alumina da empresa, Carlos Neves.

Esse tipo de estratégia de descarbonização através da eletrificação do uso da energia nas indústrias pode, inclusive, motivar a demanda por novos PPAs de prazo mais longo no mercado livre, aponta a vice-presidente de Desenvolvimento de Negócios da Scatec, Debora Canongia.

A executiva reconhece, contudo, que há uma transição para contratos mais curtos no mercado livre em geral e a busca por contratos com entrega constante de energia ao longo do dia desafiam as empresas a adaptar as suas estratégias de comercialização.

Debora Canongia, vice-presidente de Desenvolvimento de Negócios da Scatec.

Produtos verdes com a vantagem de uma matriz elétrica renovável

A country manager da Hydro Rein no Brasil, Marcela Jacob, explicou que a experiência prévia da empresa com a comercialização de energia, a princípio para abastecer a própria produção de alumínio, foi essencial para a estruturação do negócio. No Brasil, a Hydro Rein opera 456 MW de eólica, além de sua participação em Mendubim. A companhia está construindo 1,5 GW de solar, com mais 4 PPAs estruturados em dólar. 

“A companhia comprava PPAs para descarbonizar a controlada [Alunorte] e enxergou a oportunidade de atuar na geração. Sempre fomos compradores de PPA e somos uma das maiores tradings no Brasil, com um produto moldado para o cliente: energia 24 horas por dia”, disse a executiva, em evento promovido pela Scatec em sua sede em São Paulo. 

Para entregar um produto “flat” atendendo o perfil de demanda da Alunorte, a usina solar faz um swap com a comercializadora, que compra energia que excede o consumo durante o dia e vende o equivalente a essa energia a noite. Jacob destaca que isso é possível graças a alta participação de renováveis na matriz elétrica brasileira, já que no país não existe apenas o produto financeiro da energia e os contratos precisam estar atrelados a algum ativo físico.

Com a garantia de que 100% da sua demanda é atendida por renováveis, a Alunorte aposta em um “prêmio” pela produção de alumina verde. Para Jacob, o modelo pode ser replicado por diversas indústrias.

Mendubim inclusive emitirá certificados de energia renovável, os IRECs, com 60% das emissões alocadas para a Alunorte, o que é necessário para certificar o alumínio verde.

“Temos como estratégia fazer essa emissão, isso estava no modelo financeiro. A Scatec tem uma área global para a comercialização e esse papel, em alguns países, têm muita liquidez. Mas o Brasil ainda precisa amadurecer esse mercado”, comenta a vice-presidente da Scatec.

Canongia acrescenta que a demanda cada vez mais comum de consumidores por uma entrega “flat” de energia também pode abrir espaço para as soluções de armazenamento em bateria no futuro.

A Scatec tem experiência com a solução de solar com armazenamento em baterias e entregou na África do Sul um projeto combinando 540 MW de energia solar e 225 MW de bateria. O país tem uma conjuntura muito favorável para a integração de baterias, com interrupções no fornecimento de energia que chegam a durar 2h por dia.

“Temos como ambição nos tornar um dos principais players nesse segmento [de armazenamento]. Estamos aguardando o leilão de reserva de capacidade que frustrou o mercado [ao não incluir o armazenamento entre as tecnologias em sua consulta pública]”, comentou Canongia.

A Scatec tem 2 GW de projetos em avaliação no Brasil, entre eólicas onshore e solares. Opera também 162 MW da usina solar em Quixerá, Ceará, que também conta com contratos de 20 anos no mercado livre. Do pipeline, dois ou três projetos em estudo devem ser viabilizados até 2025 estima o recém-empossado Country manager da Scatec no Brasil, Aleksander Skaare. O executivo avalia que os projetos possivelmente serão solares, que estão mais competitivos que os eólicos.

Aleksander Skaare, country manager da Scatec no Brasil.

“Há um ano e meio, o mercado passa por um ciclo desafiador, para renováveis estava difícil de comercializar, não só pelo preço no piso no mercado livre, mas também pelo apetite de consumidor para fechar contratos. Mas esse ciclo está chegando ao fim”, disse Skaare.

Financiamento triplo e com requisitos de sustentabilidade

A modelagem financeira do projeto de Mendubim foi premiada internacionalmente pela sua inovação e complexidade, por envolver três sócios, um PPA em dólar no modelo de autoprodução e financiamento internacional com três bancos.

Foi o primeiro negócio em autoprodução financiado pelo BID Invest e, enquanto estava sendo estruturado, saiu a regulação para os contratos em dólar, lembra a diretora de Energia e Infraestrutura do BID, Silvana Bianco. Por ser um fundo de desenvolvimento controlado por governos, o BID tem um rating melhor que os bancos comerciais e pode oferecer um custo menor do financiamento, mas tem como política interna participar em até 33% dos empréstimos.

“A aprovação não sairia sem participação dos três bancos globais. Os bancos gostam de compartilhar riscos, especialmente em contratos de longo prazo”, adicionou o head de Project Finance do Santander, Igor Fonseca.

A participação conjunta dos bancos também foi viabilizada pelo contrato de venda de 60% da energia do Complexo por um período de 20 anos. “Precisamos entender e explicar a autoprodução [para as sedes], que é um modelo muito brasileiro”, comentou o diretor de Project Finance do BNP, Henrique Lima.

“Hoje a questão do financiamento é menos funding e mais falta de PPA. Agora com prazos menores, os contratos são insuficientes para cobrir o financiamento. A abertura do mercado livre vai tornar isso ainda mais desafiador”, comentou Bianco, do BID. 

A parte descontratada de Mendubim, de entorno de 40%, já foi um exercício para a precificação da energia descontratada.

“O desafio é como valorar a energia descontratada. Hoje é extremamente difícil encontrar contratos de 20 anos, nem os leilões do governo federal estão chegando a esses prazos, são 15 anos. Então se 15 anos eram os novos 20, agora estão virando 12, 10 anos” relata Canongia. Ela acrescentou que, além de flexibilidade para os consumidores, os contratos mais curtos podem ser usados pelos vendedores de energia para aproveitar oportunidades cíclicas, motivo pelo qual faz sentido manter uma parcela do projeto descontratada.

O lado bom é que os bancos estão sendo atraídos para as renováveis pelo viés de descarbonização e desenvolvimento social dos projetos.

O BNP, por exemplo, não pode mais financiar projetos de óleo e gás, por definição de seu estatuto. O IDB tem uma linha de grant para descarbonização que garante condições mais vantajosas por metas de impacto no desenvolvimento social.

Por esse motivo, foi necessário que o projeto olhasse para os candidatos a fornecedores de painéis, com foco na ccadeia produtiva. Os bancos estabeleceram métricas mínimas a serem seguidas.

“Por exigência do banco, pedimos aos nossos fornecedores comprovação da própria cadeia – chegamos ao ponto de receber preços diferentes para diferentes níveis de garantia da cadeia”, comentou Canongia.

A Scatec participa, inclusive, das discussões sobre reciclagem e sustentabilidade da cadeia de fornecedores de painéis na União Europeia, que foram muito impulsionadas pelos KPIs dos bancos, destaca a executiva.

“O mercado Chinês era um pouco mais opaco, mas os fornecedores chineses estão mais atentos a isso e não querem perder vendas. O mercado está mais maduro do que há 2, 3 anos”, acrescentou Fonseca.

Detalhes do projeto 

Situada no município de Assú (RN), o perímetro total de Mendubim estende-se por 38 quilômetros. O complexo compreende treze usinas, cada qual uma Sociedade de Propósito Específico (SPE). Sua construção teve início em julho de 2022. As primeiras operações comerciais tiveram início em fevereiro deste ano, pelas Mendubins 11 e 9 e, sequencialmente, as demais foram sendo acionadas até a última data de operação comercial, em março de 2024.  

O projeto chegou a contar com até 1.680 trabalhadores no pico da obra, em novembro de 2023. Ao longo de sua construção, Mendubim selecionou e treinou por 2 meses 240 mulheres sem qualquer formação profissional para profissionalização na área de renováveis (120 para montagem de módulos e 120 em áreas outras áreas de interesse).  A iniciativa, promovida em parceria com o ITEC – Instituto Tecnológico do Brasil, rendeu a contratação de 170 mulheres na fase de construção da usina. O esforço se somou a outros que permitiram à empresa conquistar, no mínimo, uma participação de 30% de mulheres na sua força de trabalho, inclusive em atividades operacionais. 

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