A matriz energética brasileira vive uma transformação acelerada, com a energia solar fotovoltaica (FV) despontando como protagonista. Atingindo marcas expressivas de capacidade instalada, essa fonte limpa e abundante traz consigo o desafio da intermitência. Neste cenário, o armazenamento de energia com baterias, especialmente as de íon-lítio, emerge como uma solução cada vez mais crucial, prometendo não apenas conferir maior confiabilidade e flexibilidade à geração solar, mas também destravar um novo universo de oportunidades econômicas e de serviços para a rede elétrica nacional.
Contudo, a massificação dos sistemas de armazenamento fotovoltaico (SAFV) no Brasil ainda navega por um emaranhado de desafios econômicos e, principalmente, regulatórios. Este artigo visa explorar a viabilidade desses sistemas no contexto brasileiro, analisando os custos, os modelos de negócio, as barreiras regulatórias, as oportunidades de mercado e as lições de experiências internacionais, como as da Alemanha e Califórnia, que já trilham caminhos mais consolidados.
A Ascensão Solar e o Imperativo do Armazenamento
O Brasil consolidou sua posição como um dos líderes globais em energia solar. Segundo dados recentes, a capacidade operacional solar fotovoltaica (usinas centralizadas e geração distribuída) já ultrapassa dezenas de gigawatts, impulsionando a transição para uma matriz mais limpa. Globalmente, o setor solar também quebrou recordes em 2024, com cerca de 597 GW instalados, elevando a capacidade mundial acumulada para aproximadamente 2,2 TW. Esse crescimento, embora vital para as metas de descarbonização, sublinha a necessidade de soluções para gerenciar a variabilidade da geração solar, que depende da irradiação e não está disponível durante a noite ou em períodos de alta nebulosidade.
O armazenamento de energia com baterias surge como a principal resposta a essa intermitência. Ele permite que a energia solar excedente, gerada durante os picos de sol, seja guardada para uso posterior – por exemplo, durante o horário de ponta, quando a demanda é alta e a energia da rede é mais cara, ou para garantir o suprimento durante falhas na rede (backup).

Viabilidade Econômica: Custos em Queda e Benefícios Crescentes
A atratividade econômica dos SAFV no Brasil é influenciada por uma combinação de fatores:
- Redução Global dos Custos das Baterias: Os preços das baterias de íon-lítio, a tecnologia dominante para SAFV, têm apresentado uma tendência de queda significativa na última década. Em 2024, o preço médio dos packs de bateria para veículos elétricos (um bom proxy para o mercado estacionário) caiu 20%, atingindo US$ 115/kWh, com projeções de alcançar menos de US$ 100/kWh até 2026 e potencialmente US$ 69/kWh até 2030. Essa redução é impulsionada por economias de escala na produção, inovações tecnológicas e queda nos preços dos materiais.
- Altas Tarifas de Energia no Brasil: O Brasil figura entre os países com tarifas de energia elétrica elevadas para o consumidor final, especialmente nos horários de ponta. Isso cria um forte incentivo para o autoconsumo da energia solar gerada e para o “peak shaving” (deslocamento do consumo do horário de ponta para horários com tarifa mais barata, usando a energia armazenada). O mercado brasileiro de sistemas de armazenamento de energia com baterias de íon-lítio residenciais, por exemplo, foi estimado em USD 113,6 milhões em 2023 e projeta-se que alcance USD 687,6 milhões até 2030, com uma taxa de crescimento anual composta (CAGR) de 29,3%.
- Modelos de Negócios e Aplicações:
- Residencial: Aumento do autoconsumo, backup de energia e redução da conta de luz.
- Comercial e Industrial (C&I): Além dos benefícios residenciais, clientes C&I podem se beneficiar da redução da demanda contratada no horário de ponta, otimização do uso de energia em processos produtivos e maior segurança energética.
- Sistemas Isolados e Comunidades Remotas: O armazenamento é essencial para garantir fornecimento contínuo em locais não conectados à rede principal.
- Serviços Ancilares para a Rede: Com a regulamentação adequada, os SAFV poderiam oferecer serviços como regulação de frequência, suporte de tensão e postergação de investimentos em infraestrutura de rede.
- Financiamento: O acesso a linhas de crédito com juros competitivos é um fator determinante. O BNDES, através do Programa Fundo Clima, possui modalidades como “Transição Energética” que podem apoiar a adoção de fontes limpas e modernização, potencialmente incluindo sistemas de armazenamento.
Apesar da trajetória de queda, o custo inicial de um SAFV ainda representa uma barreira, especialmente para o segmento residencial de menor renda. A análise de viabilidade econômica deve ser caso a caso, considerando o perfil de consumo, as tarifas de energia locais, os custos de instalação e manutenção, e a vida útil do sistema.

O Desafiador Panorama Regulatório Brasileiro
A ausência de um marco legal e regulatório claro e abrangente para o armazenamento de energia tem sido um dos principais entraves para o desenvolvimento do setor no Brasil. No entanto, movimentações recentes sinalizam um avanço gradual:
- Lei nº 14.300/2022 (Marco Legal da Geração Distribuída): Trouxe maior segurança jurídica para a GD e suas atualizações, como a Resolução Normativa ANEEL nº 1.059/2023, que detalha as regras de conexão e compensação, são fundamentais. Embora não foque diretamente no armazenamento, ela estabelece o contexto onde os sistemas de GD com baterias operarão.
- Discussões na ANEEL: A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) tem promovido discussões e consultas públicas sobre a inserção de sistemas de armazenamento. Uma chamada estratégica de P&D da ANEEL sobre armazenamento, com investimentos de R$ 300 milhões em 20 projetos, resultou em 11 patentes e sugestões de aprimoramento da regulação, incluindo a monetização de serviços como deslocamento temporal de energia e alívio de congestão. Contudo, a regulamentação mais robusta sobre soluções de armazenamento foi adiada pela ANEEL, com expectativas de avanços mais concretos em 2025.
- Projetos de Lei (PLs) sobre Armazenamento: Diversas iniciativas legislativas tramitam no Congresso Nacional visando criar um marco legal específico para o armazenamento. A definição de direitos, deveres, modelos de remuneração para os múltiplos serviços que as baterias podem oferecer (energia, capacidade, serviços ancilares) e a simplificação dos processos de outorga e conexão são pontos nevrálgicos. A aprovação de uma legislação específica é aguardada com grande expectativa pelo setor.
- Desafios Persistentes:
- Dupla Tarifação: Risco de tarifar a energia ao carregar a bateria e novamente ao usá-la ou injetá-la na rede.
- Modelo de Remuneração: Falta de clareza sobre como os proprietários de sistemas de armazenamento serão remunerados pelos serviços prestados à rede.
- Homologação e Conexão: Processos ainda podem ser complexos e demorados.
Potencializando a Geração Distribuída e as Comunidades Solares
A sinergia entre SAFV e Geração Distribuída (GD) é evidente. Para os milhões de brasileiros que já possuem sistemas fotovoltaicos em seus telhados, as baterias permitem maximizar o autoconsumo, reduzindo a dependência da rede e a quantidade de energia injetada, o que pode ser cada vez mais relevante com as mudanças nas regras de compensação trazidas pela Lei 14.300/2022.
Nas comunidades solares, onde múltiplos usuários compartilham a energia de um sistema fotovoltaico central, as baterias podem ampliar a autonomia energética, garantir o fornecimento em horários sem sol e otimizar o consumo da energia gerada coletivamente. Iniciativas como a da Revolusolar, que implementou uma cooperativa de energia solar em favelas do Rio de Janeiro, poderiam ter seu impacto e resiliência ampliados com a integração de sistemas de armazenamento.
Lições de Mercados Maduros: Alemanha e Califórnia
O Brasil pode se beneficiar da análise de mercados internacionais onde o armazenamento solar já é uma realidade consolidada:
- Alemanha: Com uma das maiores capacidades instaladas de energia solar per capita, a Alemanha viu um boom no armazenamento residencial. Em 2024, quase 600.000 novos sistemas de armazenamento de bateria estacionários foram instalados, elevando a capacidade total do país para 19 GWh, com a grande maioria (15,4 GWh) em residências. Programas de incentivo do passado, como os do banco de desenvolvimento KfW, foram cruciais. Atualmente, a combinação de altos preços de eletricidade para o consumidor e a queda nos custos das baterias tornam o autoconsumo com armazenamento uma opção atraente, mesmo com a redução de subsídios diretos. O país também foca na digitalização e na integração desses sistemas para fornecer serviços à rede.
- Califórnia (EUA): Líder em armazenamento nos Estados Unidos, a Califórnia tem metas ambiciosas e programas robustos como o Self-Generation Incentive Program (SGIP), que já destinou bilhões de dólares para incentivar a instalação de baterias, com foco em resiliência para áreas propensas a blecautes e para clientes de baixa renda. O estado possui mais de 13.000 MW de capacidade de armazenamento em operação e desenvolveu mercados para que esses ativos forneçam serviços à rede, como adequação de recursos e regulação de frequência. Recentemente, em março de 2025, reguladores da Califórnia aprovaram novas regras de segurança e manutenção para instalações de armazenamento de bateria.
Principais aprendizados para o Brasil:
- Incentivos Estratégicos: Programas de incentivo bem desenhados (financeiros ou fiscais) podem acelerar a adoção inicial, especialmente para PMEs e residências.
- Mercados para Serviços de Rede: É fundamental criar mecanismos de mercado que permitam aos sistemas de armazenamento serem remunerados por todos os serviços que podem prover, não apenas pela energia.
- Regulamentação Evolutiva e Clara: Um marco regulatório que evolua com a tecnologia, simplifique a conexão e garanta segurança jurídica é vital.
- Foco em Resiliência e Equidade: Valorizar o papel do armazenamento na resiliência energética e criar mecanismos para que populações de baixa renda também possam acessar seus benefícios.

Exemplos Reais: Semeando o Futuro no Brasil
Embora o mercado brasileiro de SAFV ainda esteja em estágio inicial, alguns exemplos e iniciativas demonstram seu potencial:
- P&D Estratégico da ANEEL: A já mencionada chamada de P&D da ANEEL para armazenamento mobilizou R$ 300 milhões em 20 projetos, gerando patentes e propostas regulatórias importantes, sinalizando o reconhecimento da importância estratégica da tecnologia.
- Projetos Piloto de Distribuidoras: Várias concessionárias de energia têm desenvolvido projetos piloto com baterias para aplicações como melhoria da qualidade da energia em fins de linha, operação de microrredes em comunidades isoladas e integração de renováveis.
- Mercado Comercial e Industrial (C&I): Empresas com alto custo de energia no horário de ponta ou com necessidade de alta confiabilidade no suprimento (data centers, hospitais, indústrias) já estão adotando soluções de solar com baterias.
- Usinas Híbridas: Há um interesse crescente em projetos de geração centralizada que combinam fontes renováveis (solar ou eólica) com sistemas de armazenamento de grande porte para otimizar a entrega de energia e participar de leilões.
Ainda faltam no Brasil projetos de armazenamento de grande escala e um volume expressivo de instalações residenciais, mas o terreno está sendo preparado.
Oportunidades e Perspectivas de Mercado no Brasil
O potencial para o mercado de armazenamento de energia solar no Brasil inclui:
- Expansão da Geração Distribuída: Com milhões de sistemas FV já instalados e a contínua expansão da GD, o mercado de retrofit com baterias e de novos sistemas híbridos é significativo.
- Eletrificação da Frota: A sinergia com veículos elétricos (V2G – Vehicle-to-Grid e V2H – Vehicle-to-Home) pode transformar cada VE em um ativo de armazenamento para a rede e para as residências.
- Universalização da Energia: Para comunidades isoladas, especialmente na região amazônica, sistemas fotovoltaicos com baterias são a solução mais limpa e muitas vezes a mais econômica para garantir acesso à energia 24/7.
- Modernização da Rede e Serviços Ancilares: À medida que a regulamentação avançar, as baterias poderão desempenhar um papel fundamental na modernização do setor elétrico, oferecendo flexibilidade e estabilidade.
- Hidrogênio Verde: A produção de hidrogênio verde, uma aposta estratégica para o Brasil, demandará grandes volumes de energia renovável, e o armazenamento pode auxiliar na garantia de um suprimento constante para os eletrolisadores. A BloombergNEF estima que o Brasil necessitará de mais de US$ 6 trilhões em investimentos energéticos até 2050 para atingir o net-zero, com papel para eletrificação, hidrogênio e energia limpa, onde o armazenamento é um facilitador.
Conclusão
O armazenamento de energia com baterias não é apenas uma opção tecnológica, mas uma necessidade estratégica para o Brasil consolidar sua transição energética de forma segura, eficiente e sustentável. A queda nos custos das baterias, a crescente conscientização sobre os benefícios do autoconsumo e da resiliência energética, e os avanços, ainda que graduais, no front regulatório, estão pavimentando o caminho para a expansão dessa tecnologia.
Superar as barreiras remanescentes, especialmente através da criação de um marco legal robusto e de mecanismos de mercado que valorizem os múltiplos atributos do armazenamento, é crucial. Inspirando-se em modelos internacionais de sucesso e adaptando-os à realidade brasileira, o país pode destravar um mercado de bilhões de reais, gerando empregos, promovendo a inovação e garantindo um futuro onde a energia solar possa brilhar em todo o seu potencial, dia e noite. O futuro da energia no Brasil certamente passa pelo armazenamento inteligente do seu abundante recurso solar.
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