A transição energética brasileira avança em ritmo acelerado, impulsionada pela expansão das fontes renováveis variáveis, como a solar e s eólica. Mas essa transformação impõe desafios operacionais e regulatórios que exigem respostas rápidas e coordenadas. Durante o Greener Summit 2025, representantes do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) defenderam a necessidade de reconfigurar o setor para lidar com a crescente variabilidade da geração.
A assessora executiva do ONS, Sumara Ticom, e o presidente da EPE, Thiago Prado, abordaram os impactos da expansão acelerada das renováveis e apresentaram propostas para garantir segurança e eficiência ao sistema. O debate girou em torno de temas como curtailment, leilões de reserva de capacidade, geração distribuída, regulação e armazenamento de energia.
Curtailment frequente revela limites da estrutura atual
Segundo Sumara, os cortes na geração centralizada, conhecidos como curtailment, deixaram de ser pontuais e passaram a ocorrer com frequência preocupante. “Cerca de 90% dos cortes hoje são energéticos, ou seja, acontecem por falta de correspondência entre geração e demanda. Não se trata de um problema de transmissão, mas da variabilidade da geração e da ausência de flexibilidade do sistema”, explicou.
O cenário se agravou após o apagão de 2022, que levou o ONS a revisar critérios operativos e reforçar restrições para garantir a segurança do sistema. Ao mesmo tempo, a expansão da geração, que saltou de 10 GW para 20 GW por ano, não foi acompanhada por um crescimento proporcional da demanda.
A executiva também alertou para os riscos da geração distribuída. “A falta de controlabilidade desse segmento pode provocar desligamentos em cascata e até novos apagões. Precisamos urgentemente de mecanismos regulatórios que permitam monitorar e controlar essa geração”, afirmou.
Planejamento precisa acompanhar nova realidade
Já Prado reforçou a análise, destacando que a expansão das renováveis alterou a linha de base do sistema. “O relatório do grupo de trabalho do curtailment já recomenda uma revisão completa dos estudos de expansão. A base mudou, e precisamos de modelos mais flexíveis que contemplem armazenamento, resposta da demanda e gestão dinâmica de limites de transmissão”, disse.
A EPE projeta que, no médio prazo, a maioria dos cortes estará associada a questões energéticas, não mais elétricas, uma mudança diretamente ligada ao avanço das obras de transmissão já licitadas. Mesmo assim, será necessário investir em soluções estruturais. “Continuamos apostando na solar e na eólica, pela atratividade do custo. Mas precisamos de mais flexibilidade, na geração, na transmissão e na demanda”, acrescentou.
Armazenamento como solução técnica e regulatória
O leilão de reserva de capacidade (LRCAP) foi apontado como instrumento estratégico para a inserção de tecnologias de armazenamento de energia. Segundo Prado, o primeiro leilão já apresentou um desenho voltado para sistemas de baterias (BESS), mas a expectativa é ampliar o escopo. “No futuro, será preciso combinar recursos de curta e longa duração. Usinas reversíveis, por exemplo, podem armazenar excedentes do fim de semana e garantir energia nas rampas do sistema durante a semana”, explicou.
Sumara reforçou a importância de definir requisitos técnicos claros para esses equipamentos. “Não basta exigir uma bateria de 4 horas. É preciso estabelecer requisitos como estabilidade de frequência e tensão, sem criar distorções de preço que inviabilizem o investimento. Já iniciamos esse diálogo com fabricantes, em workshops técnicos, para compreender os limites e as maturidades das tecnologias”, afirmou.
Novos modelos de negócio e o papel da geração distribuída
Durante o evento, também foi debatida uma proposta que sugere a adoção de incentivos econômicos para integrar o BESS à geração distribuída. A ideia é permitir que as distribuidoras definam janelas de carregamento e descarga das baterias com base em sinais de mercado, sem a necessidade de um leilão formal, com investimento 100% privado.
A proposta foi considerada tecnicamente viável, mas enfrenta obstáculos como a ausência de medição inteligente e a dificuldade de monitoramento em baixa tensão. Sumara destacou que o ONS não deseja controlar diretamente a geração distribuída, mas defende a criação de mecanismos que garantam a observação e previsibilidade desses recurso. “Sem isso, corremos o risco de perder o controle do sistema, e isso pode levar a um colapso”, alertou.
Debate regulatório: DSOs e novos agentes
A criação de operadores da rede de distribuição (DSOs) foi colocada como elemento fundamental para a integração segura da geração distribuída e dos sistemas de armazenamento. Hoje, o Brasil não possui uma estrutura clara para esse papel, e o debate ainda depende de regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “Não queremos operar a rede de distribuição, mas o setor precisa de uma entidade com capacidade técnica e regulatória para garantir controlabilidade”, disse Sumara.
A ONS já contratou estudos e consultorias para apoiar a Aneel na formulação de um modelo de DSO adaptado à realidade brasileira, analisando experiências internacionais e avaliando os ajustes normativos necessários.
Revisão de critérios operativos pode ampliar flexibilidade
Outro ponto abordado foi a revisão dos critérios de segurança do sistema, que atualmente exigem atendimento ao critério N-1 (perda simples). O ONS estuda a adoção de sistemas especiais de proteção (SEPs) para permitir mais flexibilidade, inclusive em contextos de perda dupla (N-2), sem comprometer a estabilidade.
“A adoção de SEPs pode ampliar a capacidade de escoamento e permitir uma operação mais eficiente. Estamos analisando os riscos e benefícios, e os primeiros números devem ser apresentados ao Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CNSE) em breve”, disse Sumara.
Flexibilidade como eixo da transição energética
A discussão evidenciou um consenso entre os especialistas de que o Brasil precisa urgentemente de mais flexibilidade para lidar com a variabilidade das fontes renováveis. Isso envolve planejamento dinâmico, novos modelos de contratação, evolução regulatória e investimentos em tecnologias como armazenamento e medidores inteligentes.
A transição energética já está em curso, mas sua sustentabilidade dependerá da capacidade do setor de se adaptar, técnica e institucionalmente, a um novo paradigma elétrico, descentralizado, digital e dinâmico.
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