MP 1.304 reacende debate sobre encargos, subsídios e futuro da geração distribuída no Brasil

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A Medida Provisória 1.304, apresentada pelo governo federal, recoloca em pauta os dilemas do setor elétrico brasileiro: como equilibrar tarifas, subsídios e investimentos sem comprometer a previsibilidade regulatória. O texto cria o Encargo de Complemento de Recursos (ECR), mecanismo acionado caso o teto de gastos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) seja ultrapassado.

Embora a MP não revogue a Lei 14.300, que instituiu o Marco Legal da Geração Distribuída (GD), especialistas e entidades alertam que ela pode introduzir riscos relevantes para o segmento. Ao mesmo tempo, a medida pode se tornar oportunidade para discutir temas estratégicos, como a abertura total do Mercado Livre e o marco legal do armazenamento de energia.

Para entender os possíveis impactos da MP 1.304, a pv magazine Brasil conversou com a vice-presidente de Geração Distribuída da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) e presidente da Bright Strategies, Barbara Rubim, o advogado especialista em direito tributário e energias renováveis, Thiago Bao, e o presidente do Movimento Solar Livre (MSL), Hewerton Martins, que apontaram riscos, contradições e oportunidades que o texto pode trazer para a GD e para o setor elétrico como um todo.

O encargo que divide opiniões

O coração da MP 1.304 é o ECR. Se o teto da CDE estourar, o encargo será acionado em 50% a partir de 2027 e em 100% em 2028, e rateado entre os agentes considerados beneficiários de subsídios.

Para Bárbara Rubim, a lógica do mecanismo transfere para o consumidor uma responsabilidade que deveria ser do governo. “É como se no Bolsa Família, caso o orçamento fosse estourado, as próprias famílias recebessem um boleto para devolver parte do benefício. É exatamente isso que a regra do ECR propõe no setor elétrico”, afirma.

Já Bao chama atenção para os efeitos funcionais. “Na prática, o ECR é uma nova despesa a ser rateada. Para projetos em operação, pode reduzir margens. Para os novos, aumenta o risco regulatório e pressiona a atratividade do investimento”, explica.

Segundo Martins, o problema está no desequilíbrio entre grandes e pequenos beneficiários. “O pequeno consumidor com energia solar já tem regra de pagamento até 2029. Mas os grandes consumidores do mercado livre seguem com subsídios vitalícios. Se o ECR for mal desenhado, o pequeno, que já paga, pode acabar pagando ainda mais”, reforça.

O que muda para GD I, II e III

Apesar das preocupações, os efeitos da MP não atingem todos os modelos de geração distribuída de forma igual. Projetos de microgeração (GD I), até 75 kW, não são custeados pela CDE e, portanto, não seriam impactados.

O risco recai sobre os sistemas enquadrados como GD II e GD III, que estão no período de transição regulatória previsto pela Lei 14.300. Caso o teto da CDE seja ultrapassado, esses consumidores e geradores poderiam ser chamados a arcar com o ECR.

“Se a avaliação do orçamento da CDE for séria e criteriosa, o impacto pode ser baixo”, pondera Bárbara Rubim. “Mas se houver subdimensionamento proposital, isso vira uma forma de transferir uma conta extra para o setor”, acrescenta.

Bao alerta que até contratos já registrados na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) podem perder sua segurança jurídica. “A MP abre brechas para revisão regulatória. Mesmo contratos formalizados, considerados ativos seguros, podem ter seu equilíbrio econômico-financeiro questionado”, diz o advogado.

O risco da instabilidade regulatória

O setor de GD se consolidou no Brasil apoiado em previsibilidade. Qualquer sinal contrário afeta diretamente o fluxo de capital, aponta presidente do MSL. “Sem segurança regulatória, o investidor pensa duas vezes antes de colocar dinheiro no setor. Isso pode frear o crescimento da solar distribuída no Brasil”, diz Martins.

Essa percepção é reforçada por Thiago Bao que afirma que “a GD cresceu porque havia clareza de regras. Se o Marco Legal continua em disputa e sujeito a emendas que mudam tarifas e compensações, o capital migra para outros modelos ou até outros países.”

Abertura de mercado e armazenamento

A MP 1.304 também é vista como possível veículo para incluir dispositivos da reforma elétrica, como a abertura do mercado livre de energia para todos os consumidores. Embora esse ponto ainda não esteja confirmado, lideranças do Congresso já sinalizaram que ele pode voltar ao debate no relatório do senador Eduardo Braga.

Outro tema que ganha força é a criação de um Marco Legal para o armazenamento de energia. No dia 1º de outubro, um café da manhã no Senado Federal reuniu Absolar, Associação Brasileira de Soluções de Armazenamento de Energia (Absae) e Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), para defender a urgência da regulamentação.

As entidades apresentaram um texto de consenso propondo três modelos de aplicação de baterias: acopladas à geração, conectadas ao sistema de transmissão ou diretamente ao consumidor na GD, este último considerado o mais viável no curto prazo.

“A MP 1.304 pode ser uma excelente oportunidade para alavancar o desenvolvimento do armazenamento de energia, que é parte da solução para os desafios de segurança de suprimento do país”, avalia a vice-presidente de GD da Absolar.

O que está em jogo

A MP 1.304 vai muito além de um dispositivo fiscal para conter gastos da CDE. Ela abre espaço para repensar subsídios, redistribuir encargos e, possivelmente, avançar na abertura do Mercado Livre e no marco do armazenamento.

Enquanto especialistas divergem sobre o impacto imediato na GD, o consenso é que a instabilidade regulatória é hoje o maior risco. Até a apresentação do relatório do senador Eduardo Braga, o setor permanecerá em estado de alerta, entre a promessa de previsibilidade e o temor de que novas regras freiem o crescimento da energia solar distribuída no Brasil.

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