Marco legal e regulamentação do armazenamento: urgência e desafios para o setor elétrico

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O Brasil vive um paradoxo energético. De um lado, possui uma das matrizes mais limpas do mundo, com 85% de fontes renováveis, ancoradas pela expansão da energia solar e eólica. De outro, enfrenta cortes crescentes de geração, o chamado curtailment, que desperdiçam milhares de megawatts de energia limpa diariamente, enquanto térmicas caras e poluentes seguem operando.

Nesse cenário, o armazenamento de energia surge como solução essencial, mas ainda carece de uma regulação consolidada que permita sua plena adoção. No “Marco legal e regulamentação infra legal do armazenamento de energia” de evento realizado pela Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica, (Absolar), no último dia 30/09, representantes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), do setor jurídico, de empresas de energia e de tecnologia convergiram em uma mensagem: o país precisa agilizar a criação de um marco regulatório e adotar medidas emergenciais para transformar a abundância renovável em segurança energética.

O evento na capital paulista ganhou reforço com um café da manhã realizado ontem (01/10) junto ao Senado Federal em Brasília para reforçar a urgência da criação do Marco Legal do Armazenamento no país. A mobilização “A Urgência do Marco Legal do Armazenamento” foi organizada pela Associação Brasileira de Soluções de Armazenamento de Energia (Absae), Absolar e a Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica) e contou com a participação do Ministério de Minas e Energia (MME).

As entidades divulgaram um “texto de consenso” para criar o marco legal do armazenamento dentro da Medida Provisória (MP) 1.304, que estabelece um limite para os subsídios na conta de luz e deve tratar da reforma do setor elétrico. O texto apresenta três modelos de aplicação para o armazenamento: baterias acopladas à geração, ao sistema de transmissão e diretamente ao consumidor na GD (geração distribuída), que vem sendo apontado como o caminho mais rápido de ser implementado no país.

A regulação como base do mercado

No evento da Absolar, o secretário-geral da Aneel, Daniel Cardoso Danna, destacou a evolução do processo regulatório iniciado em 2020, com a Tomada de Subsídios, e que avançou para a Consulta Pública nº 39 de 2023, recebendo 652 contribuições da sociedade e do setor privado.

Segundo Danna, a agência já avançou em definições cruciais, como o enquadramento do armazenamento como Produtor Independente de Energia, com outorga de 35 anos, além de estabelecer a possibilidade de sistemas autônomos ou colocalizados com usinas. No entanto, pontos sensíveis seguem em debate, como a tarifação e os encargos aplicáveis.

“A missão da Aneel é proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento do mercado, equilibrando interesses dos agentes e garantindo benefícios à sociedade. Estamos de 95% a 99% concluídos nesse processo e esperamos consolidar em breve um marco regulatório robusto, capaz de dar segurança jurídica e previsibilidade ao setor”, afirma Danna.

Ele lembrou ainda que o processo regulatório será concluído em 2028, após dois novos ciclos que deverão tratar de usinas reversíveis, repartição de custos de rede e aperfeiçoamentos sobre o corte de energia.

O desperdício de energia renovável: uma “tragédia nacional”

Se a Aneel trouxe a visão institucional, o tom mais enfático do painel veio de Rubens Brandt, CEO do Grupo Energia, que classificou o curtailment como um dos maiores desafios atuais do setor.

Apresentando dados de agosto de 2025, Brandt revelou que os cortes chegaram a 5.800 MW médios, o equivalente a desligar toda a carga do estado do Paraná, cerca de 7% do consumo nacional.

“É uma situação alarmante. Em agosto, jogamos fora o equivalente à geração garantida de Belo Monte e Itaipu juntas. Não podemos tratar como normalidade cortar energia renovável enquanto mantemos térmicas em operação. Isso é uma tragédia nacional”, critica Brandt.

O executivo destacou ainda que os cortes se concentram nas manhãs, especialmente em fins de semana e feriados, exatamente quando há maior incidência solar. Para ele, a contradição entre o corte de renováveis e o despacho de térmicas ilustra a falta de flexibilidade no planejamento do sistema.

“Estamos discutindo armazenamento há cinco anos, enquanto outros países já avançaram há mais de 15. Não podemos esperar até 2029 para agir. As baterias são a nossa máquina do tempo energética: permitem guardar o excedente de manhã e liberá-lo à tarde, substituindo térmicas caras e poluentes”, reforça o executivo.

A lente jurídica: segurança regulatória como pilar

O aspecto legal foi aprofundado por Henrique Reis, sócio do escritório Demarest, que ressaltou que, sem um marco claro, os investidores não terão confiança para apostar em larga escala no armazenamento.

Segundo ele, a definição de enquadramentos, direitos e deveres é tão ou mais importante do que a própria evolução tecnológica.

“O setor privado já observa oportunidades, mas sem segurança jurídica não haverá escala. O Brasil precisa de um marco legal robusto e estável, que dê condições claras para os investidores, evitando insegurança regulatória e gargalos contratuais”, afirma Reis.

Ele lembrou que o sucesso da energia solar e eólica no país só foi possível porque houve um ambiente de estabilidade regulatória que garantiu a entrada de capital. O mesmo, defende, precisa ocorrer com o armazenamento.

Soluções digitais e viabilidade econômica

Encerrando o painel, Danton Filho, CEO da Volt Robotics, trouxe uma visão tecnológica e pragmática. Para ele, o armazenamento não deve ser visto como uma solução restrita à arbitragem de preços, mas como uma plataforma multifuncional que pode oferecer múltiplos serviços ao sistema e aos consumidores.

“Limitar as baterias apenas à arbitragem seria como usar um smartphone moderno só para fazer ligações. Assim como os celulares, elas têm múltiplas aplicações: backup, serviços ancilares, otimização de consumo e, claro, redução do curtailment. É uma tecnologia versátil e estratégica”, afirma o executivo.

Danton apresentou resultados de um modelo desenvolvido pela empresa, baseado em inteligência artificial inspirada em algoritmos genéticos, que dimensiona o tamanho ideal das baterias para consumidores e geradores. Os testes indicam que, com a queda nos preços esperada já para 2026, a viabilidade econômica será uma realidade próxima.

“Estamos aplicando inteligência artificial para identificar cenários de menor custo e maior benefício. Os resultados já mostram que os sistemas se pagam em poucos anos, especialmente quando consideramos todos os serviços que podem oferecer. É uma solução para hoje, não para daqui a uma década”, conclui Filho.

Agir antes que seja tarde

Apesar das diferenças de enfoque, todos os executivos concordaram em um ponto: o tempo é o maior inimigo. O Brasil não pode esperar até 2028 para concluir a regulamentação ou para implantar projetos em escala. O risco é perder competitividade, desperdiçar energia renovável em volumes cada vez maiores e comprometer o papel estratégico do país na transição energética global.

O armazenamento de energia, como reforçaram os especialistas, não é apenas uma tendência tecnológica. Ele representa uma condição estrutural para o futuro do setor elétrico, capaz de reduzir custos, garantir segurança, integrar fontes variáveis e acelerar a descarbonização. O recado foi claro: o Brasil precisa transformar urgência em ação.

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