A transição energética global está entrando em uma nova fase, mais granular e democrática. Se a primeira onda foi marcada pela construção de grandes usinas renováveis, a segunda onda nos aproxima de um paradigma onde cada telhado, condomínio ou propriedade rural pode se tornar um agente ativo no ecossistema elétrico. No centro dessa transformação estão duas tecnologias disruptivas: o comércio de energia peer-to-peer (P2P) e o blockchain. Juntas, elas prometem descentralizar, desintermediar e democratizar o acesso à energia solar, criando um modelo onde consumidores negociam energia limpa diretamente entre si.
Este artigo explora os fundamentos dessa revolução, analisa casos de uso pioneiros no Japão, Austrália e Europa, investiga o vasto potencial para comunidades urbanas e rurais no Brasil e navega pelos desafios jurídicos e regulatórios que ainda separam essa visão do nosso futuro energético.
A Dupla Dinâmica: Entendendo P2P e Blockchain
O conceito de comércio de energia P2P é intuitivo: “prosumidores” – consumidores que também produzem energia, tipicamente com painéis solares fotovoltaicos – podem vender seu excedente diretamente para seus vizinhos ou outros membros da comunidade. Este modelo contorna a necessidade de vender a energia exclusivamente para a distribuidora local, permitindo que o valor gerado permaneça na comunidade e que os compradores acessem energia limpa a preços potencialmente mais competitivos.
Para que essa troca direta ocorra de forma confiável e segura, entra em cena o blockchain. Essencialmente, o blockchain é um livro-razão digital, distribuído e imutável. No contexto energético:
Transparência e Segurança: Cada transação de energia (por exemplo, “Casa A vendeu 2 kWh para Casa B às 14:05”) é registrada como um “bloco” de dados criptografado e adicionado a uma “corrente” permanente. Este registro é compartilhado entre todos os participantes da rede, tornando-o praticamente à prova de fraudes ou alterações.
Contratos Inteligentes (Smart Contracts): São programas autoexecutáveis que rodam na blockchain. As regras da transação – preço, volume, horário – são pré-programadas. Quando as condições são atendidas (a energia é gerada e o vizinho precisa dela), o contrato executa a transação automaticamente, transferindo os créditos de energia e o pagamento sem a necessidade de um intermediário.
Essa combinação cria um mercado de energia localizado, ágil e baseado na confiança mútua, empoderando os consumidores e otimizando o uso dos recursos energéticos distribuídos.

Imagem: Fernando Caneppele
Pioneiros Globais: Onde a Revolução Já Acontece
Diversos países, impulsionados pela alta penetração de energia solar e por marcos regulatórios favoráveis, já estão testando e implementando o futuro da energia.
Japão: O país tem sido um celeiro de inovação. A empresa Trende Co., em colaboração com cooperativas agrícolas, lançou um serviço comercial de P2P que utiliza inteligência artificial para previsão de demanda e blockchain para as transações, permitindo que fazendas e supermercados com painéis solares otimizem o consumo local. Outro exemplo notável é a parceria entre a Mitsubishi Electric e o Tokyo Institute of Technology para desenvolver uma plataforma P2P que otimiza o casamento entre ordens de compra e venda, garantindo o melhor preço para ambas as partes. A australiana Power Ledger também realizou testes bem-sucedidos na região de Kanto e com a gigante de energia KEPCO, em Osaka, demonstrando a viabilidade de integrar sua plataforma de blockchain com os medidores inteligentes existentes.
Austrália: Com um dos maiores índices de energia solar residencial do mundo, a Austrália é um laboratório natural para o P2P. O projeto RENeW Nexus, liderado pela Curtin University em Fremantle, permitiu que moradores de um complexo de apartamentos negociassem diretamente o excedente de seus sistemas solares. Em uma escala mais rural, a Power Ledger implementou um projeto piloto em Wongan Hills, na Austrália Ocidental, conectando edifícios comerciais e residenciais para a troca de energia solar, provando a eficácia da tecnologia para além dos grandes centros urbanos.
Europa: O continente europeu avança com iniciativas transfronteiriças. A plataforma Equigy, fundada por operadoras de rede da Alemanha, Holanda, Itália e Suíça (TenneT, Terna, Swissgrid), utiliza blockchain para criar um mercado de balanceamento de rede com base em recursos distribuídos, como baterias residenciais e de veículos elétricos. Na Espanha, empresas como a Iberdrola utilizam blockchain para garantir a rastreabilidade da energia renovável, certificando sua origem de ponta a ponta e aumentando a transparência para o consumidor final.
O Horizonte Brasileiro: Potencial Imenso e Primeiros Passos
O Brasil possui todos os ingredientes para se tornar um líder na revolução P2P. A crescente capacidade de geração distribuída (GD), que já ultrapassa 27 GW, aliada a altas tarifas de energia e uma abundância de sol, cria um forte incentivo econômico para a geração de valor local.
Potencial em Comunidades Urbanas e Rurais:
Comunidades Urbanas: Em condomínios verticais e horizontais, a tecnologia P2P permitiria que apartamentos com melhor exposição solar vendessem seu excedente para vizinhos com menor geração. Em comunidades de baixa renda, como as favelas, onde projetos como o da Revolusolar no Rio de Janeiro já demonstram o poder da energia solar comunitária, o P2P poderia criar uma camada adicional de resiliência e geração de renda.
Comunidades Rurais: Para o agronegócio, o excedente de energia gerado para alimentar sistemas de irrigação poderia ser vendido para propriedades vizinhas. Em comunidades isoladas da Amazônia, a combinação de microrredes solares com P2P poderia garantir segurança energética e reduzir a dependência de geradores a diesel, caros e poluentes.
Projetos-Piloto e o Sandbox Regulatório da ANEEL:
Embora a comercialização direta de energia entre consumidores de baixa tensão ainda não seja regulamentada oficialmente no Brasil, a ANEEL já iniciou testes por meio de sandboxes regulatórios para novas soluções no setor. Algumas distribuidoras, como a CPFL e a Cemig, estão envolvidas em estudos e iniciativas relacionadas a essas inovações, embora não haja confirmação de que seus projetos oficiais dentro desses ambientes envolvam a criação de marketplaces P2P com blockchain para venda de excedentes entre consumidores de baixa tensão. O exemplo mais concreto e avançado desse tipo de projeto com blockchain corresponde à Copel, que já desenvolveu e testou uma plataforma para comercialização direta entre consumidores e prosumidores, sob a supervisão da ANEEL.
Paralelamente, startups brasileiras como a IPE Assets estão explorando a tokenização de ativos solares, permitindo que qualquer pessoa invista em uma fração de uma usina solar através de tokens em blockchain. Embora não seja uma troca de energia P2P, demonstra a crescente familiaridade e confiança do mercado brasileiro na tecnologia blockchain para o setor de energia.
Potencial da Energia P2P em Diferentes Contextos Brasileiros
Contexto |
Potencial de Aplicação |
Benefícios-Chave |
Condomínios Urbanos |
Troca de energia entre apartamentos e áreas comuns. |
Redução de custos, otimização do sistema solar compartilhado, alívio na rede local. |
Comunidades de Baixa Renda |
Criação de cooperativas de energia com rateio e venda de créditos. |
Inclusão energética, geração de renda local, resiliência contra falhas na rede. |
Agronegócio |
Venda de excedente de energia de sistemas de irrigação e produção. |
Nova fonte de receita, redução de custos operacionais, eletrificação de áreas rurais. |
Comunidades Isoladas |
Formação de microrredes autossuficientes baseadas em P2P. |
Segurança energética, substituição de combustíveis fósseis, autonomia local. |
Navegando o Labirinto: Desafios Jurídicos e Regulatórios no Brasil
O maior obstáculo para a disseminação do P2P no Brasil não é tecnológico, mas regulatório. O arcabouço atual, estruturado pela Lei nº 14.300/2022, se baseia no Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), onde o excedente é injetado na rede da distribuidora em troca de créditos energéticos, não em uma transação comercial direta com outro consumidor.
Os principais desafios são:
- Modelo Regulatório Inexistente: Falta uma regulamentação específica da ANEEL que defina as regras para as transações P2P, incluindo os direitos e deveres de cada parte.
- Uso da Rede de Distribuição: Como remunerar a distribuidora pelo uso de sua infraestrutura (o “fio”) para transportar a energia de um vizinho para o outro? A definição de uma “tarifa de transação P2P” é complexa e crucial para a viabilidade do modelo.
- Papel das Distribuidoras: As concessionárias precisariam evoluir de meras fornecedoras de energia para operadoras de plataforma ou gestoras desses mercados locais, um novo modelo de negócios que precisa ser incentivado e regulamentado.
- Segurança de Dados: As transações P2P envolvem dados detalhados de consumo. É imperativo garantir que as plataformas estejam em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), assegurando a privacidade dos consumidores.
Conclusão: Construindo o Futuro, Um Bloco de Cada Vez
O comércio de energia peer-to-peer com suporte de blockchain representa a fronteira da transição energética. Ele transforma consumidores passivos em agentes ativos, otimiza o uso de recursos distribuídos e tem o potencial de criar um sistema elétrico mais resiliente, eficiente e equitativo.
Exemplos internacionais provam que o modelo é viável, e os primeiros movimentos no Brasil, através das propostas no sandbox da ANEEL e da inovação em tokenização, mostram que o apetite por essa transformação já existe. Contudo, para que o Brasil realize seu vasto potencial, é fundamental um esforço coordenado. O governo, a ANEEL, as distribuidoras, a academia e as startups precisam colaborar para construir um marco legal claro, que incentive a inovação enquanto garante a estabilidade do sistema e a proteção ao consumidor.
O desafio é complexo, mas a recompensa é imensa: posicionar o Brasil na vanguarda da revolução energética descentralizada e garantir que os benefícios da nossa abundante energia solar sejam compartilhados por todos.
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