Reciclagem e reaproveitamento de módulos fotovoltaicos: o desafio dos próximos 20 anos

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Reciclagem e reaproveitamento de módulos fotovoltaicos: o desafio dos próximos 20 anos

A energia solar fotovoltaica (FV) é uma protagonista indiscutível na transição energética global, com um crescimento exponencial de sua capacidade instalada. No entanto, essa expansão acelerada traz consigo um desafio monumental para as próximas décadas: a gestão do crescente volume de módulos fotovoltaicos em fim de vida (EoL, do inglês “end-of-life“). O que fazer com toneladas de painéis solares que chegam ao término de sua vida útil, tipicamente entre 25 e 30 anos? A resposta reside na criação de uma robusta economia circular para o setor, transformando um potencial problema ambiental em uma vasta gama de oportunidades econômicas e de inovação, especialmente para startups e para a consolidação de uma economia verdadeiramente verde.

Este artigo explora o panorama da gestão de resíduos fotovoltaicos, as projeções de volume no Brasil e no mundo, os modelos de logística reversa e upcycling, e as promissoras oportunidades que emergem nesse cenário.

O tsunami de resíduos fotovoltaicos: projeção global e brasileira

A Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA), em um relatório seminal com a Agência Internacional de Energia (IEA-PVPS) de 2016, estimou que o volume acumulado de resíduos de painéis fotovoltaicos pode alcançar entre 60 e 78 milhões de toneladas globalmente até 2050. Se esses materiais forem totalmente reinjetados na economia, o valor dos componentes recuperados poderia ultrapassar os 15 bilhões de dólares até o mesmo ano, possibilitando a produção de 2 bilhões de novos painéis ou a venda desses materiais para outros mercados. De forma mais específica, a previsão é que até 2030, o mundo terá cerca de 1,7 a 8 milhões de toneladas de resíduos de painéis solares, e até 2050, esse número pode chegar a 60-78 milhões de toneladas acumuladas.

No Brasil, embora a maior parte dos sistemas fotovoltaicos tenha sido instalada nos últimos anos, a demanda por reciclagem já é uma realidade, principalmente devido a danos em transporte, instalação, falhas de qualidade ou eventos climáticos extremos. Um artigo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR) mencionou uma estimativa da IRENA de que, nas próximas três décadas, cerca de 550 mil toneladas de painéis solares deverão ser descartadas no Brasil.

Região/País Projeção de Resíduos de Módulos FV até 2050 (Estimativa IRENA, 2016)
Global 60 – 78 milhões de toneladas 
China 13,5 – 20 milhões de toneladas (considerando a liderança do país na capacidade instalada) 
Ásia (excluindo China) Estimativas regionais variadas, mas significativas dado o crescimento da Ásia 
Europa A Alemanha, por exemplo, é projetada para ter um grande volume de resíduos, com a Europa como um todo acumulando milhões de toneladas. 
América do Norte Os EUA são projetados para serem um dos maiores geradores de resíduos, com milhões de toneladas acumuladas. 
Brasil Potencial de 40 mil toneladas até 2040 e 550 mil toneladas nas próximas três décadas (acumulado). Outras estimativas da IRENA apontam para 8,5 mil toneladas até 2030. 

Fonte: Baseado em dados da IRENA & IEA-PVPS (2016) e ABSOLAR.

Os relatórios mais recentes das mesmas fontes (IRENA e IEA-PVPS), como os citados — “Future of Solar Photovoltaic: Deployment, investment, technology, grid integration and socio-economic aspects” (IRENA) de 2019, “Circular Economy in the Solar PV Sector” (IRENA) de 2020, “Status Report on Photovoltaic Module Recycling” (IEA-PVPS) de 2022 e as publicações anuais “Trends in Photovoltaic Applications” — não apresentam mudanças drásticas nos números globais de projeção de resíduos de painéis solares até 2050 em relação ao relatório seminal de 2016.

Modelos de logística reversa e a necessidade de estruturação

A gestão eficaz dos resíduos fotovoltaicos depende crucialmente da implementação de modelos de logística reversa eficientes. Atualmente, no Brasil, não existe uma regulamentação específica para a reciclagem de painéis solares, enquadrando-se na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e no decreto que regulamenta a logística reversa de eletroeletrônicos (Decreto nº 10.240/2020), que inclui os painéis fotovoltaicos.

A logística reversa envolve a coleta, transporte, triagem e destinação final ambientalmente adequada dos módulos EoL. Alguns modelos emergentes incluem:

  • Responsabilidade estendida do produtor (REP): Fabricantes e importadores se responsabilizam pela gestão dos seus produtos ao final da vida útil. Esquemas coletivos, como o PV CYCLE na Europa, são exemplos de sucesso, oferecendo serviços de coleta e reciclagem para seus membros desde 2007 e gerenciando uma rede de pontos de coleta em toda a UE. A First Solar no Estados Unidos também possui um programa de coleta e reciclagem pré-financiado para seus painéis de telureto de cádmio, estabelecido como um dos pioneiros na indústria.
  • Pontos de coleta e centros de triagem: Estruturação de uma rede capilarizada para facilitar o descarte pelos usuários e o encaminhamento para recicladores especializados.
  • Modelos de incentivo: Programas governamentais ou privados que incentivam a devolução e a reciclagem correta dos painéis, como subsídios ou créditos.

Ainda há desafios significativos, como o custo da logística reversa, especialmente em países de grandes dimensões como o Brasil, e a conscientização dos usuários sobre a importância do descarte adequado.

Ciclo de Vida e Circularidade dos Módulos Fotovoltaicos: Da Extração de Matérias-Primas ao Tratamento de Fim de Vida. Fonte: (Karthick, 2024)

Upcycling e tecnologias de reciclagem

A reciclagem de módulos fotovoltaicos visa recuperar materiais valiosos como vidro (cerca de 75% do peso do painel), alumínio (cerca de 10%), silício, cobre, prata e polímeros (como EVA). As tecnologias de reciclagem estão em constante evolução, buscando aumentar a eficiência da recuperação e a pureza dos materiais.

Os processos típicos de reciclagem envolvem:

  • Desmontagem: Remoção manual ou automatizada do quadro de alumínio e da caixa de junção.
  • Separação de componentes: Processos térmicos (como a pirólise a 500°C para remover os polímeros), mecânicos (trituração, peneiramento) e químicos (lixiviação ácida para separar metais) são utilizados para separar o vidro, os encapsulantes, as células fotovoltaicas e os metais.
  • Purificação dos materiais: Refinamento dos materiais recuperados para atingir a qualidade necessária para reuso em novas aplicações.

O upcycling, que consiste em transformar os resíduos em produtos de maior valor agregado, também apresenta oportunidades interessantes. Por exemplo, o vidro recuperado pode ser utilizado na produção de novos painéis, em outras aplicações na construção civil (como em telhas ou agregados para asfalto) ou na indústria de embalagens. O silício recuperado, dependendo da pureza, pode ser reutilizado na indústria fotovoltaica (se atingir alta pureza) ou em outras aplicações eletrônicas e metalúrgicas.

Institutos de pesquisa e empresas estão desenvolvendo tecnologias inovadoras. O ITRI (Industrial Technology Research Institute) de Taiwan, por exemplo, desenvolveu um processo que remove os componentes camada por camada sem triturar o painel, facilitando a recuperação de materiais mais puros. Na Europa, projetos como o ReProSolar e o Icarus (este último focado em painéis de filme fino) investigam métodos para recuperar todos os elementos dos painéis em escala industrial e aumentar as taxas de reciclagem de silício e outros metais valiosos. A empresa francesa ROSI Solar desenvolveu um processo que permite a recuperação de silício de ultra-alta pureza e outros metais menores, como prata e cobre.

Fonte: https://www.icarus.eu.com/solar-panels-face-recycling-challenge/

Oportunidades para startups e empresas

O crescente volume de resíduos fotovoltaicos abre um vasto campo para o empreendedorismo e a inovação, impulsionando a economia verde. As oportunidades se manifestam em diversas áreas:

  • Logística reversa inteligente: Startups podem desenvolver soluções tecnológicas para otimizar a coleta e o transporte de painéis EoL, utilizando rastreamento, roteirização e plataformas de gestão.
  • Tecnologias de reciclagem inovadoras: Há espaço para o desenvolvimento e aprimoramento de processos de reciclagem mais eficientes, econômicos e com menor impacto ambiental, focando na recuperação de materiais de alta pureza, como silício e prata.
  • Desenvolvimento de novos produtos a partir de materiais reciclados (Upcycling): Criação de novos modelos de negócio baseados na transformação de componentes de painéis EoL em produtos de valor agregado para diversas indústrias. A SunCrafter, na Alemanha, por exemplo, transforma módulos desativados, mesmo aqueles com algum dano, em geradores solares plug-and-play para aplicações off-grid.
  • Serviços de consultoria e certificação: Demanda por especialistas em gestão de resíduos fotovoltaicos, auditoria de processos de reciclagem e certificação de conformidade ambiental.
  • Reparo e remanufatura: Extensão da vida útil de painéis através de reparos e remanufatura, uma alternativa interessante antes da reciclagem completa, podendo criar um mercado secundário para painéis usados, mas funcionais.

No Brasil, a empresa SunR já atua na reciclagem de painéis, tendo processado mais de 150 toneladas de módulos até meados de 2023 e com expectativas de aumento de volume. Internacionalmente, startups como Solarcycle (EUA), que recebeu investimentos significativos para construir plantas de reciclagem avançada, ROSI Solar (França), e Tialpi (Itália) estão desenvolvendo soluções inovadoras para a reciclagem e revalorização de materiais da indústria fotovoltaica.

Volumes globais acumulados estimados de resíduos de módulos fotovoltaicos em fim de vida.

Exemplos Reais no Brasil…

SunR: Empresa brasileira sediada em Sorocaba (SP) que iniciou serviços de reciclagem de painéis fotovoltaicos, focando em distribuidores e integradores de sistemas. Processou cerca de 150 toneladas de módulos até meados de 2023.

Iniciativas Acadêmicas e de P&D: Universidades como a USP, UNICAMP e centros de pesquisa como o Lactec têm conduzido pesquisas sobre processos de reciclagem e caracterização de resíduos de painéis fotovoltaicos, explorando métodos para otimizar a recuperação de materiais.

…e no Mundo

PV CYCLE (Europa): Um dos maiores e mais bem-sucedidos esquemas de coleta e reciclagem de módulos fotovoltaicos em fim de vida na Europa, estabelecido em 2007. Oferece serviços de conformidade, coleta e reciclagem em toda a UE e outros países.

First Solar (EUA e Global): Possui um programa de reciclagem global para seus módulos de telureto de cádmio (CdTe) desde 2005, com altas taxas de recuperação de material (cerca de 90% dos semicondutores e vidro).

ROSI Solar (França): Inaugurou em 2023 sua primeira planta industrial de reciclagem em Grenoble, França, com capacidade para processar 3.000 toneladas de painéis por ano, focando na recuperação de materiais de alto valor como prata, cobre e silício de
alta pureza.

Planta de Reciclagem da Veolia (França): Em parceria com o PV CYCLE, a Veolia opera uma planta em Rousset, França, desde 2018, dedicada à reciclagem de painéis solares de silício cristalino, capaz de processar 1.300 toneladas por ano, com planos de expansão.

Solarcycle (EUA): Startup que está construindo plantas de reciclagem avançada nos EUA, utilizando tecnologia para recuperar mais de 95% do valor dos materiais dos painéis, incluindo prata, silício, cobre e alumínio.

Projetos de P&D na Ásia: Países como Japão, Coreia do Sul e China, grandes produtores e utilizadores de painéis solares, também estão investindo em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de reciclagem e estabelecendo regulamentações. O Japão, por exemplo, possui diretrizes e promove a pesquisa para reciclagem de PV.

Desafios e o Caminho a Seguir

Apesar das oportunidades, a consolidação de uma economia circular para módulos fotovoltaicos enfrenta desafios:

Custos: O custo da coleta, transporte e dos processos de reciclagem ainda pode ser uma barreira, especialmente se o valor dos materiais recuperados não for suficiente para cobrir as despesas. A rentabilidade da reciclagem é altamente dependente dos preços dos materiais e da eficiência do processo.

Tecnologia: Embora existam tecnologias eficientes, a pesquisa contínua é necessária para aprimorar os processos, reduzir custos e aumentar a recuperação de todos os materiais, incluindo aqueles presentes em menores quantidades mas com alto valor ou potencial de impacto ambiental. Painéis de filme fino (como CdTe e CIGS) apresentam desafios específicos devido à presença de materiais perigosos e estruturas complexas, embora empresas como a First Solar tenham processos dedicados.

Infraestrutura: A falta de infraestrutura de coleta e reciclagem em escala em muitas regiões é um gargalo significativo.
Regulamentação: A ausência de marcos regulatórios específicos e harmonizados em muitos países, incluindo o Brasil (que ainda se baseia na PNRS de forma mais genérica para eletroeletrônicos), dificulta a responsabilização e o investimento no setor. A diretiva WEEE (Waste Electrical and Electronic Equipment) na Europa é um exemplo de regulamentação que inclui metas para a recuperação e reciclagem de painéis fotovoltaicos desde 2012.

Conscientização: É fundamental educar consumidores, instaladores e todos os elos da cadeia sobre a importância do descarte correto e das opções de reciclagem.

Para superar esses desafios, é crucial uma abordagem multifacetada que envolva governos (através de políticas públicas claras, metas de reciclagem e incentivos), a indústria (investindo em design para reciclagem, em P&D para processos mais eficientes e em programas de logística reversa robustos), a academia (desenvolvendo novas tecnologias e formando profissionais) e a sociedade civil (adotando práticas de consumo consciente e descarte adequado).

A transição para uma economia circular no setor fotovoltaico não é apenas uma necessidade ambiental, mas uma oportunidade estratégica para gerar valor, promover a inovação e garantir a sustentabilidade a longo prazo de uma das fontes de energia mais importantes para o futuro do planeta. O desafio dos próximos 20 anos é transformar o “lixo solar” em um recurso valioso, fechando o ciclo de vida dos módulos fotovoltaicos de forma inteligente e rentável.

Referências
KARTHICK, U. Life Cycle of Solar Panel. In: KARTHICK, U. Solar Sustainability: Redefining Waste Management in Renewable Energy. Dindigul: SSM Institute of Engineering and Technology, 2024. Disponível em: https://ppl-ai-file-upload.s3.amazonaws.com/web/direct-files/attachments/66938081/119389cf-d42e-4105-8570-e64af2b13f44/Solar_Sustainability_Redefining_Waste_Management_i.pdf. Acesso em: 3 jun. 2025.

Fernando de Lima Caneppele é professor Associado da Universidade de São Paulo (USP) e atua com foco em Energia, Transição Energética e Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 7 (ODS7).

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