A intensificação das mudanças climáticas, aliada ao aumento da demanda por alimentos e energia, impõe um desafio global: como produzir mais utilizando menos recursos naturais? Nesse contexto, surge o conceito de sistemas agrivoltaicos, que propõem o uso simultâneo da mesma área para cultivo agrícola e geração de energia solar. Essa solução inovadora alia tecnologia, sustentabilidade e geração de renda, especialmente para comunidades rurais e pequenos produtores.
O sistema agrivoltaico funciona com a instalação de painéis solares elevados sobre o solo cultivável, permitindo que a luz solar seja compartilhada entre as plantas e os módulos fotovoltaicos. O sombreamento parcial reduz o estresse térmico das culturas, melhora a eficiência hídrica e mantém a produtividade agrícola, enquanto gera energia limpa e renovável. Essa sinergia tem ganhado destaque em diversas regiões do mundo e começa a ganhar força também no Brasil.
Conceito e Fundamentos do Sistema Agrivoltaico
Os sistemas agrivoltaicos foram concebidos para otimizar o uso da terra em contextos onde há competição entre agricultura e geração energética. A estrutura envolve a instalação de painéis solares a uma altura suficiente para permitir o crescimento das plantas e o uso de máquinas agrícolas.
Essa disposição favorece uma relação simbiótica: enquanto os painéis solares oferecem sombreamento controlado às culturas, protegendo-as do excesso de radiação e reduzindo a evaporação da água no solo, as plantas ajudam a resfriar os painéis por evapotranspiração, aumentando sua eficiência energética.
Além dos benefícios ambientais, essa tecnologia também oferece ganhos econômicos: a produção de energia pode ser usada localmente ou vendida à rede elétrica, gerando uma segunda fonte de renda para o produtor rural.
Experiências Reais no Brasil
Embora o conceito ainda esteja em fase inicial de implementação no Brasil, há uma série de projetos-piloto promissores que demonstram o potencial do sistema agrivoltaico em diferentes regiões e culturas.
- Agri-PV system – IEE (USP), ESALQ(USP), RCGI(USP), Innova Power(USP) e TotalEnergies
Em Piracicaba SP, este projeto visa desenvolver e implementar um sistema agrivoltaico (Agri-PV) que integre geração fotovoltaica e cultivo agrícola no mesmo espaço físico, proporcione adaptação climática ao setor agropecuário e sirva como plataforma de pesquisa aplicada, demonstração tecnológica e modelo replicável para propriedades ruais.
O projeto, coordenado pelos professores Maurício Roberto Cherubin (ESALQ-USP) e Roberto Zilles (IEE-USP), está inserido no esforço de inovação tecnológica e transição energética promovido pela USP em parceria com instituições científicas e empresas do setor energético, visando sustentabilidade, segurança alimentar e energética e resiliência climática.
Sistema Agro-FV: combinando produção de energia solar com produção de alimentos e mudanças climáticas. Imagem: Roberto Zilles (IEE/USP)
- Comunidade Indígena Pankará – Itacuruba (PE)
Um dos exemplos mais emblemáticos está no sertão pernambucano, na comunidade indígena Pankará. Um sistema agrivoltaico foi instalado sobre uma horta comunitária, com apoio de organizações da sociedade civil e institutos de pesquisa. Os painéis abastecem bombas para irrigação e ao mesmo tempo protegem as hortaliças do calor excessivo da Caatinga. O resultado tem sido uma melhoria significativa na segurança hídrica e alimentar da comunidade.
- Universidade Federal de Alagoas – Projeto com Cana-de-Açúcar
A UFAL conduz um estudo experimental, coordenado pelo professor Ricardo Araujo Ferreira Junior (UFAL), sobre o cultivo de cana-de-açúcar sob estruturas fotovoltaicas. Os resultados preliminares revelam aumentos de produtividade entre 6% e 23%, além da geração de energia elétrica. O sombreamento dos painéis solares resultou em maior índice de área foliar e altura das plantas, em comparação com a área sem sombreamento.
Sistema agrofotovoltaico em Alagoas – Uma integração cana-de-açúcar e geração de energia fotovoltaica. Imagem: Ricardo Araujo Ferreira Junior (UFAL)
- Minas Gerais – EPAMIG, Cemig e CPQD
Projetos em Minas Gerais estão testando diferentes modelos de espaçamento entre módulos, combinações de culturas (hortaliças, frutas e gramíneas), além da pecuária e estruturas de fixação. O objetivo é encontrar a configuração ideal para maximizar o uso do solo em sistemas semiáridos e mecanizados. Os primeiros resultados indicam viabilidade técnica e econômica, com previsão de replicação em polos agrícolas do estado.
Eficiência Hídrica e Microclima
Um dos aspectos mais relevantes dos sistemas agrivoltaicos é o ganho em eficiência no uso da água. Estudos apontam que o sombreamento dos painéis pode reduzir até 30% da evaporação da umidade do solo, fator crítico em regiões de seca prolongada. A sombra diminui a temperatura do solo e das plantas, reduzindo a perda de água por evaporação e transpiração.
Além disso, sensores e algoritmos podem ser integrados aos sistemas para ajustar o ângulo dos painéis conforme o ciclo das culturas, otimizando a quantidade de luz direta e difusa necessária em cada fase do crescimento vegetal.
As alterações no microclima (temperatura e umidade) sob os painéis beneficiam culturas sensíveis ao calor, equilibrando produção agrícola e energética.
No caso do semiárido brasileiro, onde a escassez hídrica limita a produtividade agrícola, a tecnologia pode transformar a lógica de produção, permitindo o cultivo em áreas antes inativas por conta do calor extremo e da limitação de irrigação.
A seguir, alguns resultados comparativos entre métodos convencionais e sistemas agrivoltaicos em cultivos experimentais:
Cultura | Produção (Agrivoltaico vs Convencional) | Eficiência de Uso da Água (AV vs Convencional) | Observações |
Pimenta silvestre | 3x maior no AV | Sem diferença significativa | Maior fotossíntese e adaptação ao sombreamento |
Pimenta jalapeño | Praticamente igual | 157% maior no AV | Menor perda de água por transpiração (~65%) |
Tomate cereja | 2x maior no AV | 65% maior no AV | Melhora por alívio de estresse térmico e hídrico |
Comparativo de Produção e Eficiência Hídrica em Cultivos Agrivoltaicos versus Convencionais. Adaptado de BARRON-GAFFORD et al., 2019.
Impactos Econômicos e Sociais
A adoção de sistemas agrivoltaicos gera impactos sociais positivos significativos. Para os pequenos produtores, representa a possibilidade de diversificar a renda com a venda de excedentes de energia, além da economia direta na conta de luz. Em algumas regiões, a energia gerada tem sido utilizada para alimentar bombas d’água, sistemas de refrigeração ou pequenas agroindústrias.
Segundo o Senado Federal, mais de 200 mil produtores rurais já utilizam alguma forma de energia solar no Brasil, e muitos deles poderiam migrar para modelos agrivoltaicos com apoio técnico e acesso a financiamento.
Diversos estudos vêm reforçando a viabilidade técnica e financeira do agrivoltaico em contextos de agricultura familiar. Um estudo de 2024, apresentado no Congresso Brasileiro de Energia Solar, avaliou a viabilidade de sistemas agrivoltaicos em uma associação de agricultura familiar no estado do Amazonas. O projeto, que envolveu quatro famílias ribeirinhas produtoras de alimentos orgânicos, demonstrou que mesmo sem subsídios públicos, o sistema pode apresentar retorno financeiro atrativo: o payback descontado foi estimado em 7 anos e 10 meses, com Valor Presente Líquido (VPL) de R$ 98 mil e Taxa Interna de Retorno (TIR) de 24,41%.
O estudo propôs dois arranjos tecnológicos (um sistema elevado e uma casa de vegetação com módulos solares), utilizando materiais já comuns na região. Além da economia direta de energia, observou-se o potencial de sinergia com modelos de negócios de energia compartilhada, aproveitando a estrutura organizacional da associação para distribuir créditos de energia elétrica entre os membros. Essa abordagem reforça a viabilidade da adoção do agrivoltaico por pequenos produtores em regiões remotas e com alto custo de energia.
Além da renda, os ganhos indiretos incluem o fortalecimento da autonomia energética de comunidades rurais, a melhora na segurança alimentar e o estímulo ao cooperativismo e empreendedorismo local.
Desafios e Oportunidades para Expansão
Apesar do seu grande potencial, a adoção em larga escala de sistemas agrivoltaicos ainda enfrenta desafios importantes. Um dos principais obstáculos é o custo inicial elevado, que pode limitar a implantação por pequenos e médios produtores. No entanto, esse investimento tende a se mostrar compensador ao longo do tempo, especialmente quando a energia gerada é utilizada para reduzir os custos operacionais da propriedade ou comercializada por meio da geração distribuída. Para viabilizar economicamente esses sistemas, já existem mecanismos de financiamento disponíveis, como o Fundo Clima do BNDES, linhas de crédito verdes e parcerias com cooperativas de crédito.
Outro ponto crucial é a capacitação técnica. A implementação de sistemas agrivoltaicos exige conhecimentos multidisciplinares que envolvem tanto a produção agrícola quanto a engenharia de sistemas solares. Para isso, é fundamental promover ações coordenadas entre universidades, instituições como o SENAI, SENAR e os institutos federais, com o objetivo de formar profissionais aptos a projetar, instalar e manter essas estruturas. Esse processo, além de suprir a demanda técnica, também pode impulsionar a geração de empregos verdes no país.
Por fim, o avanço da regulamentação e dos incentivos específicos é indispensável para consolidar o agrivoltaico como um modelo híbrido de uso do solo. É necessário o desenvolvimento de um marco legal que reconheça as particularidades desse sistema e ofereça benefícios fiscais adequados. Além disso, os órgãos ambientais e de energia precisam atuar na definição de zonas prioritárias de implantação, à semelhança do que já ocorre em países como Índia e Alemanha, que vêm liderando iniciativas nessa área.
Exemplos Internacionais
Experiências ao redor do mundo reforçam o potencial do agrivoltaico:
- Alemanha: O projeto Fraunhofer ISE demonstrou aumento de 186% na produtividade agrícola total (alimento + energia).
- Japão: Sistemas foram instalados em arrozais e hortas, com impacto positivo na renda de agricultores familiares.
- Estados Unidos: Arizona e Colorado adotam o modelo em propriedades de frutas e outras culturas, com sensores automatizados para rotação dos painéis.
- França: Redução de até 63% na evapotranspiração das plantas e manutenção da qualidade das frutas em verões quentes. Foco em sombreamento inteligente com algoritmos que ajustam os painéis conforme as necessidades das plantas.
- Itália: Preservar a qualidade do vinho durante ondas de calor e integrar produção agrícola de alto valor com energia solar.
Energia solar e agricultura conectadas pela inovação
Fabricantes têm desenvolvido painéis solares especificamente voltados para o uso agrícola, com foco em eficiência energética e compatibilidade com as exigências das culturas. Os módulos bifaciais, por exemplo, captam luz solar em ambos os lados, aumentando a geração total de energia por metro quadrado. Painéis semitransparentes permitem a passagem parcial de luz, favorecendo culturas que se desenvolvem melhor sob sombreamento parcial, enquanto estruturas móveis e rastreáveis ajustam automaticamente a inclinação dos painéis ao longo do dia, otimizando tanto a captação solar quanto o microclima das plantações.
O avanço das tecnologias de monitoramento e controle também tem elevado a precisão no manejo agrivoltaico. Sensores IoT monitoram continuamente parâmetros como umidade do solo, temperatura, radiação solar e desempenho dos módulos, gerando dados em tempo real. Esses dados alimentam sistemas baseados em inteligência artificial, que analisam padrões e otimizam o posicionamento dos painéis e o manejo agrícola associado. Aplicativos móveis complementam essas soluções ao permitir que produtores acessem, acompanhem e ajustem remotamente o funcionamento dos sistemas, aumentando a autonomia operacional das propriedades.
Soluções de armazenamento de energia vêm se consolidando como parte essencial dos sistemas agrivoltaicos modernos. Baterias de alta capacidade viabilizam o uso da energia gerada mesmo durante a noite ou em dias nublados, enquanto microrredes inteligentes permitem a gestão descentralizada da energia elétrica em diferentes setores da propriedade. Em alguns casos, a integração com veículos elétricos agrícolas permite que as baterias dos próprios implementos funcionem como unidades móveis de armazenamento, contribuindo para a estabilidade energética e a redução do uso de combustíveis fósseis nas atividades rurais.
Conclusão
A combinação entre energia solar e agricultura não é apenas uma inovação tecnológica: é uma alavanca concreta para a transformação do meio rural brasileiro. Os sistemas agrivoltaicos oferecem uma resposta sofisticada aos dilemas do uso eficiente da terra, da escassez hídrica, da pobreza energética e da insegurança alimentar — desafios centrais do século XXI.
O Brasil, com sua abundância solar, diversidade agrícola e capacidade técnica instalada, está especialmente bem posicionado para liderar essa transição. Casos reais demonstram que a aplicação em pequena escala já é viável economicamente, inclusive sem subsídios, e que os impactos sociais são imediatos: autonomia energética, geração de renda, estímulo ao cooperativismo e valorização de práticas agroecológicas.
O avanço dessa agenda depende agora de ações coordenadas entre governo, universidades, empresas e instituições financeiras. É hora de transformar pilotos em políticas, e projetos-piloto em programas estruturantes. O agrivoltaico não é apenas uma tendência — é uma oportunidade estratégica de posicionar o Brasil na vanguarda da sustentabilidade global.
Fernando de Lima Caneppele é professor Associado da Universidade de São Paulo (USP).
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